''Se eu conseguisse criar um conto inteiro, cabeça tronco membros dentes e risadas, ficaria menos entediada neste dia de longo feriadão que paira sobre minha cabeça desprotegida. “Literatura é saúde”, disse um cara chamado Deleuze – mas é mais do que isso: é aquela última esperança, o galhinho raquítico do arbusto que nos engancha diante do abismo faminto que escancara já sua goela, salivando para nos engolir – mesmo assim, de pijama e de banho não tomado, na precariedade da manhã?
A gente afinal escreve é para fazer companhia a si próprio. Para ler o conto ou o romance que se quer ler – ou viver. Para encher de vozes coloridas os rincões empoeirados de nosso castelo interior, arejar seus salões, chamar músicos e jograis para um grande festival em que desfilaremos fantasiados de reis e rainhas, prelados (pelados), guerreiros, cortesãs (de bobo da côrte?) – enfim, luxo sofisticado de veludos, sedas e brocados suaves ao tacto, esplendorosos de visão, manjares de requinte comprovado, eflúvios de harpas dedilhadas por desocupados anjos transexuais.
Consulto arquivos de idéias de contos, contos cristalizados, em calda fina, em salmoura até, fragmentos de contos possíveis, contos embalsamados, opa! Que acervo! É uma surpresa boa, posso pegar o que quiser para continuar a trabalhar – o do japonês caolho? O da moça que perdeu o vestido de noiva? O da freira, dizem, que transou com o diabo... sim? (para ficar só nos divertidos). A escolha é difícil e...
Ops! Tocaram a campainha? Quem... surpresa!
Ora, pois é ninguém menos do que Bruce Lee em pessoa que vem partilhar o tédio enfarruscado do meu feriado. Bem-vindo!
Não. Não o fantasma do famoso mestre das lutas marciais, não pensem, não. Algo menor, menos fortão, mais gracioso e peludo, que atende por esse nome, e que entra fuçando a casa toda, batizando a perna do sofá, roendo minha havaiana predileta: meu bisneto-cão (criação do meu neto), um shi-tsu cor de cacau mesclado, de cinco meses, que veio – de mochilinha preparada e tudo – passar dois dias com a bisa, enquanto o neto, sabe como é, né, vó, vou passear com a namorada, será que a senhora podia?
É claro que eu podia. Para isso são feitas as avós. E os feriadões.''
Por Cecília Prada - ex-diplomata, historiadora, escritora, autora de teatro, tradutora, jornalista Prêmio Esso. Uma mulher. Uma ilustre amiga do Encontro Com Elas.
Hahaha, muito legal! Adorei!
ResponderExcluirQuando será o próximo encontro com elas?
ResponderExcluirOi Ju!
ResponderExcluirO próximo Encontro Com Elas será em uma manhã de domingo no mês de dezembro, com um trabalho super legal de Biodanza!
Em breve postaremos os detalhes.
Beijos!
Duda